«Algo de muito surpreendente acontece hoje no mundo. Este é o tempo em que o Omnipotente afasta o seu rosto daque¬les que lhe suplicam. Deus escondeu ao mundo a sua face; por isso, os homens estão abandonados às suas piores paixões sel¬vagens. Num tempo em que estas paixões dominam o mundo, é natural que as primeiras vítimas sejam precisamente aqueles que conservaram vivo o sentido do divino e do puro. Isto pode não ser consolador, mas o destino do nosso povo é estabelecido não por leis terrenas, mas por leis ultraterrenas.
Aquele que empenha a sua fé nestes acontecimentos deve ver neles uma parte da grandiosa realização dos planos divinos, perante os quais as tragédias humanas não têm nenhum significado. Não procurarei salvar-me nem tentarei fugir daqui. Meterei esta carta na garrafa vazia e escondê-la-ei entre as pedras desta janela entaipada até meio. Se, mais tarde, alguém a encontrar, talvez possa compreender os sentimentos de um judeu, de um destes milhões de judeus que foram mortos, um judeu abando¬nado por Deus em quem acreditava muito intensamente.
Creio no Deus de Israel, embora ele tenha feito de tudo para arrasar a minha fé nele. As minhas relações com Ele já não são as de um servo diante do seu senhor, mas as de um discípulo perante o seu mestre. Creio nas suas leis, amo-o. E, embora me tenha enganado em relação a ela, continuarei a adorar a sua lei. Dizes que pecámos: certamente que pecámos e também admito que sejamos punidos por isso. Contudo, gostaria que me dissesses se há algum pecado na terra que mereça tal cas¬tigo. Digo-te isto, ó meu Deus, porque creio em ti mais do que nunca, porque sei que és o meu Deus e não o Deus daqueles, cujos actos são o fruto horrível da sua impiedade militante.
Não posso louvar-te pelos actos que toleras, mas bendigo-te e louvo-te pela tua Majestade que inspira temor. A tua Majes¬tade deve ser verdadeiramente imensa para que tudo o que acontece neste tempo não te impressione. Agora, a morte já não pode esperar mais. Tenho de deixar de escrever. Minuto a minuto, o tiro das espingardas, nos andares de cima, torna-se cada vez mais fraco. Neste momento, caem os últimos defensores do nosso refúgio e, com eles, cai a grande, a bela Varsóvia judaica que teme a Deus. O Sol põe-se e eu te agradeço, ó Deus, porque nunca mais o verei surgir. Raios vermelhos chovem da janela: o pedacinho de céu, que posso ver, é flame¬jante e fluido como um fluxo de sangue. Dentro de uma hora, no máximo, estarei junto da minha mulher, dos meus filhos e dos melhores dos filhos do meu povo, num mundo melhor, em que as dúvidas já não dominarão e Deus será o único soberano.
Morro sereno, mas não satisfeito; como um homem abatido, mas não desesperado; crente, mas não suplicante; amando a Deus, mas sem dizer cegamente: Ámen. Segui a Deus, mesmo quando Ele me repeliu. Cumpri o seu mandamento mesmo quando, para premiar a minha observância, Ele me castigava. Amei-o, amava-o e amo-o ainda, embora me tenha abaixado até ao chão, me tenha torturado até à morte, me tenha reduzido à vergonha e ao escárnio. Podes torturar-me até à morte, acredi¬tarei sempre em ti; amar-te-ei sempre, mesmo que não queiras. E estas são as minhas últimas palavras, meu Deus de cólera: Não conseguirás fazer com que te renegue.
Tentaste de tudo para fazer-me cair na dúvida, mas eu morro como vivi: numa fé inabalável em ti. Louvado seja o Deus dos mortos, o Deus da vingança, o Deus da verdade e da fé que ime¬diatamente mostrará os fundamentos com a sua voz omnipo¬tente. Shema' Israel, Adonai Elohenu, Adonai echad! Escuto, Israel, o Senhor é o nosso Deus, o Senhor é um!»
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