quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Ingrid Betancourt



Na primeira pessoa

Ingrid Betancourt esteve sequestrada pelas FARC quase sete anos. No dia 2 de Julho foi libertada com outros 14 reféns na sequência de uma operação infiltrada do Exército colombiano. Diz que foi "um milagre". E desde então tem-se desdobrado em entrevistas. Mas das torturas de que foi alvo não fala. Fala de perdão. De fé. E de amor.

Durante todo este tempo vivi na selva. Dormíamos em tendas feitas de material camuflado. Nos últimos sete anos, passei os dias a coçar-me por causa dos insectos. Todos os dias. Foi um inferno. Um inferno para o corpo e para o espírito. Estivemos acorrentados. Tivemos que esconder-nos. Tivemos que correr. Tivemos os olhos vendados. Tínhamos todo o tipo de dores. Dores pequenas, grandes dores... Conhecia todos os reféns que foram resgatados [no dia 2 de Julho]. Foram a minha família durante anos. Amo-os e estou muito feliz por estarem livres.

Fomos torturados. Mas não vou falar sobre isso. Não estou preparada. Não sei se alguma vez vou estar. Creio que é suficiente para o mundo saber que a guerra é algo que destroça vidas e almas. Muitas coisas que aconteceram na selva têm de ficar na selva. Era a única mulher no acampamento. Tomar banho, mudar de roupa, tudo era difícil para mim. Por exemplo, tinha este cabelo que cresceu, cresceu, cresceu e lavá-lo demorava muito mais tempo que os outros. Como andava sempre atrasada eles [os elementos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC)] passavam o dia a gritar comigo.

Na selva, nunca se sabe o que vai acontecer a seguir. Pode-se estar a almoçar, num momento, e no segundo seguinte está-se a receber ordens para arrumar as coisas e ir embora. E tem-se cinco minutos para ficar pronto. E isto pode acontecer em qualquer altura. Podemos ficar num campo por um dia ou podemos ficar por seis meses. Nunca se sabe. É preciso uma disciplina especial para ir fazendo coisas diferentes, para manter a noção das datas e os dias, para manter os pés assentes no chão. Tentava fazer coisas especiais em ocasiões especiais. No Natal, por exemplo. No Ano Novo. No aniversário dos meus filhos.

Ordem para matar

Tinha um rádio. Era a minha televisão e o meu DVD e todas essas coisas que existem agora e com as quais não sei lidar. De manhã cedo ouvia as mensagens da minha mãe. Na Colômbia há um programa especial através do qual familiares de vítimas de sequestro podem enviar as suas mensagens e ela costumava telefonar. Também ouvia a BBC todos os dias. Sei os nomes de todos os locutores. E ouvia o barulho de fundo quando eles falavam, ouvia se estava vento...Vivi sete anos com a consciência de que a morte era a minha companheira de todos os dias. Sabia que eles tinham ordens para matar-me se alguém tentasse resgatar-me.

Há duas categorias de prisioneiros das FARC: os prisioneiros de guerra - militares e polícias - e os prisioneiros políticos, como eu. Estes últimos são os mais odiados, somos os "porcos responsáveis pela guerra". As FARC dizem ser os únicos que combatem pelos colombianos, com as armas. Eu dizia que também combatia, mas com ideias. Tinha vontade de lhes perguntar: "Como ousam acreditar que o vosso combate é melhor do que o meu?" Eu luto pela justiça social. E contra a corrupção. Eles causam a corrupção. Pagam a pessoas do Estado para passar armas e drogas.

Terei contactado com mais de 300 guerrilheiros de todas as idades, de todas as condições. Destes 300, não terá havido mais de dois ou três a revelar um comportamento de compaixão. As FARC jogam com os sentimentos. Torturam-nos e tratam-nos como um cão, mas se precisam de alguma coisa, transformam-se - e estes seres horríveis e falam com gentileza. Mas houve duas ou três pessoas que me ajudaram, apesar da pressão do grupo e de saberem que se tivessem um comportamento diferente comigo podiam ser punidos, ir a conselho de guerra, ser fuzilados. Houve um momento em especial em que estava muito doente e precisava de medicamentos. E alguém arriscou e passou-me os medicamentos às escondidas.

Bravo Maria

Passei por coisas terríveis. Acho que o pior foi ter percebido que os seres humanos podem ser tão horríveis com outros seres humanos. Num ambiente de solidão espiritual, quando à minha volta não havia mais do que inimigos agressivos, aprendi a não reagir como reagia antes. Tive que aprender o silêncio e a baixar a cabeça.

Só podia falar com a Virgem. Bravo Maria. Descobri que podemos ser levados a odiar uma pessoa, a odiar com todas as forças do nosso ser e, ao mesmo tempo, a encontrar o alívio através do amor. Dizia: "Por ti, Senhor, não vou dizer que o odeio".

Por vezes, um guerrilheiro vinha sentar-se junto de mim, cruel, abominável, e era capaz de lhe sorrir. À noite, sonhava com os meus filhos. Quando chegou o momento de reencontrá-los, foi melhor, muito melhor do que o que sonhei. São seres humanos fantásticos.

Portanto estou muito grata a Deus porque sei que eles sofreram e que podiam estar cheios de raiva e amargura. Mas o que encontrei... como dizer isto? Foi dois seres espiritualmente elevados.

No dia em que fomos resgatados acordámos às quatro da manhã, como habitualmente. Como sempre, rezei. Ouvi as notícias na rádio. Ouvi as mensagens da minha mãe. Depois tiram-me as correntes e disseram-nos que tínhamos que preparar-nos, arrumar as coisas. Soubemos que havia um helicóptero a chegar com uma espécie de comissão internacional que queria falar-nos... mas não sabíamos ao certo o que ia acontecer.

Um dos comandantes veio falar comigo e perguntei-lhe o que é que podíamos esperar. Disse que o helicóptero iria levar-nos para outro local para, provavelmente, falarmos com um comandante superior. Disse-nos que talvez nos fossem libertar, ou transferir para outro local, ou que talvez voltássemos ao acampamento.Partilhei essa informação com os meus companheiros. Pensámos que talvez um de nós fosse ser libertado. Rezávamos para que fosse a nossa vez. Mas não queria ser libertada sem ser com os outros, não queria que isso acontecesse.

Depois ouvimos os helicópteros. Atravessámos o rio e ficámos perto do local onde foi feita a aterragem. Do helicóptero saíram quatro homens e uma mulher. Os meus companheiros perguntavam-me: "São franceses? São suíços?" E eu dizia: "Não sei, não sei quem são. Não reconheço ninguém." Os guerrilheiros mandaram-nos calar. Estavam excitados e agressivos.

Achei que aquilo afinal não era nenhuma comissão internacional. Que era uma fraude. E havia um homem com uma câmara a filmar-nos. Senti-me muito desconfortável. Não queria que ele me filmasse. Pensei que queriam mostrar ao mundo que estávamos vivos e que iam usar aquelas imagens para dizer ao mundo que eram bons tipos e que nos estavam a tratar bem e que nos iam manter no cativeiro mais cinco ou seis anos. Disseram-nos que para entrarmos no helicóptero tinham que amarrar-nos as mãos. Foi muito humilhante. Tínhamos aqueles tipos armados à nossa volta e queriam amarrar-nos as mãos? Um grito do fundo do estômago, quando o helicóptero levantou voo, neutralizaram o comandante que entrou connosco. Toda a gente o estava a pontapear.

E depois ouvimos a voz do líder do grupo a dizer: 'Somos do Exército colombiano. Estão livres." Não consigo encontrar palavras para descrever... tinha que ser real. Quem iria brincar com uma coisa daquelas? O tipo que gritou transmitia uma energia incrível. Foi maravilhoso. Gritei. Foi um grito que veio do fundo do meu estômago. E depois abracei toda a gente, beijei toda a gente... quer dizer.... foi de loucos. Foi muito intenso. Chorámos. Não foi o melhor momento da minha vida - o melhor momento da minha vida foi o nascimento dos meus filhos. Mas foi o melhor momento desta provação.

A viagem no helicóptero pareceu durar uma eternidade. Estava assustada. Pensava: "E se o helicóptero cai? E se tivermos um acidente?" É estúpido, mas pensava nisso. Perguntei: "Quanto tempo vamos demorar?" Disseram-me três minutos. E aqueles três minutos pareceram uma eternidade. Agora que estou livre sinto-me noutro planeta. Aquelas pessoas [os guerrilheiros] parecem-me... extra-terrestres. A única coisa que quero, e rezo por isso, é que Deus os abençoe.

Tenho que construir uma vida

Os últimos dias têm sido intensos. Estou exausta. Estou num estado de euforia. E espero que não passe. Espero não me esquecer do quão bom é estar viva e ser livre. É um privilégio. Sei que não tenho uma vida, tenho que construir uma. Sei que os meus filhos têm a sua vida e que têm que continuar com ela. Estou a aterrar da pára-quedas na vida das pessoas que têm as suas actividades diárias e eu não tenho nada. Há seis dias estava acorrentada a uma árvore. Agora estou livre e a tentar perceber como é que vou viver daqui para a frente.
Nas primeiras noites em que voltei a dormir numa cama só pensava como é incrível. O meu corpo estranhou e gozou cada bocadinho. É fácil adaptarmo-nos às coisas boas. É difícil habituarmo-nos às más. Não quero esquecer o que aconteceu, mas quero perdoar. Aprendi a perdoar. E não apenas os meus carcereiros, mas também os meus companheiros com quem tive, por vezes, momentos difíceis, as pessoas que amava e que disseram horrores como por exemplo "se foi sequestrada foi porque se pôs a jeito."

Nunca, nunca, nunca perdi a fé.

Deus esteve comigo do primeiro ao último dia da minha horrível experiência. E Ele continua comigo. E eu rezo todos os dias. Desde o momento em que fui libertada peço-lhe que nos conceda o milagre de libertar os outros reféns como fez connosco. Porque para mim foi um milagre.

No dia 20 de Julho há uma grande marcha na Colômbia para pedir a libertação dos reféns, para dizer às FARC: "Párem. É infame o que vocês fazem." Quero que este combate não seja só um combate dos colombianos. Quer que seja um combate de todo o mundo. Os reféns precisam que se lute por eles como se lutou por mim.

Andreia Sanches
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