Erri di Luca escreve de forma muito pertinente que a Fé é
deixar de tratar Deus pela terceira pessoa e passa-Lo a tratar pela segunda.
O vocabulário bíblico da Fé pode ensinar alguma coisa a quem
se questiona no século XXI sobre a relação com Deus? A Bíblia define a Fé
sobretudo de dois modos: como temor de Deus e como confiança. Parecem coisas
completamente inconciliáveis, mas talvez não sejam. A Fé para ser experiência
vital deve misturar ambas.
O temor de Deus tem o seu fundamento na consciência da
alteridade de Deus. Deus é Deus. Quer dizer: Deus é (e há de continuar) uma
pergunta infinita; é Todo-Outro, transcendente e pleno de mistério. Temor,
porém, não quer dizer medo: é precisamente o resultado da anulação do medo e da
sua substituição por um misto de reverência perante a imensidão de Deus. Vista
dessa perspectiva, a Fé é o modo de permanecer fiel a este Deus cuja
transcendência é compreendida não como terrífica ou paralisante, mas sim
suscitadora de uma abertura orante. Esta é, por exemplo, a Fé de Job que,
quando confrontado com a omnisciência de Deus, diz: "Vou pôr a mão na
boca, e não volto a dissertar insensatamente sobre Deus" (Job 39, 37-38).
E, no mesmo sentido, a de São Gregório Palamas, teólogo do século XIV: "A
natureza de Deus não pode ser pensada, nem vista, nem dita, porque está distante
de todas as coisas. Não existe nome para mencioná-La, nem neste século, nem no
futuro; e nenhuma palavra encontrada na alma e proferida pela língua, nem
qualquer imagem pode dar-nos o Seu conhecimento. Para nomear Deus é preciso
renunciar a tudo o que é ou pode ser nomeado". A Fé provoca sempre a
desarrumação dos nossos saberes e razões e mergulha-nos no silêncio. Os crentes
não têm a cabeça cheia de ideias sobre Deus. Quanto mais se vive de Deus menos
se sabe, ensinam os místicos.
Mas a Fé não se fica apenas pela purificadora consciência do
que nos distancia de Deus. A Fé é o impossível da presença tornado possível
pelo próprio Deus. Ele toma a iniciativa do encontro e a Fé explica-se então
como revelação, história comum, amizade partilhada. Por isso, sem a semântica
da confiança ninguém consegue descrever a Fé. O escritor italiano Erri di Luca,
que vive numa grande dilaceração entre crer e não-crer, escreve de forma muito
pertinente que a Fé é deixar de tratar Deus pela terceira pessoa e passa-Lo a
tratar pela segunda (Tu ou Vós). O próprio termo bíblico guarda uma variante
riquíssima de sentidos que vai nessa linha: significa “estar seguro em” e
alude, igualmente, à estreita relação que existe entre a mãe que aleita e a
criança que é ob¬jecto desse carinhoso cuidado. Jesus, que para os cristãos é
não só objecto de Fé mas também seu modelo, soube chamar por Deus como a
criança fala com o seu pai, com a mesma simplicidade, a mesma intimidade, o
mesmo abandono confiado. Lição a redescobrir para fazer da Fé uma experiência
vital.
José Tolentino Mendonça
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