sexta-feira, 16 de março de 2012

O sonho de Caná


Foi quando finalmente acordei que me aconteceu este Sonho que me foi oferecido para te contar…
Senti-me em terra Palestina, nas pegadas do meu bem amado, sorvi o cheiro das amendoeiras e molhei os pés nas águas do Lago da Galileia. Fui levado lá por uma Promessa, pela palavra de um Anjo daqueles que nos saem ao encontro tantas vezes na vida… E esse Anjo, humaníssimo, tinha prometido que o meu Senhor havia de esperar-me na Galileia, que ele havia de nos preceder, a mim e aos meus irmãos, na Galileia… Olhou-me com olhos de homem e falou-me com palavras humanas: “Lá o vereis!”
E nunca pensei que “lá” fosse tão perto…
Saudou-me um jovem, leve, sereno, de olhos antigos… Chamou-me pelo nome, mas eu não tinha nome para lhe chamar. Perguntei-lho e ele sorriu apenas, dizendo que tinha por Nome um segredo trocado entre ele e o Pai num Abraço que eu ainda não seria capaz de decifrar…
Trazia ao ombro, para me oferecer, uma túnica longa e belíssima, tecida para a dança, tingida a cores de festa…
- “Chama-me como todos me conhecem – disse ele – aquele filho perdido que foi recuperado num abraço de Pai… Foi quando caí em mim que, finalmente, me levantei! Ergui-me na queda de mim mesmo, quando dei de caras com o mais íntimo de que era feito e fiquei exposto ao que tinha feito de mim… Mas foi outro olhar que me libertou… Um olhar de longe, apesar de estar tão próximo que vinha de dentro de mim, uns olhos de Pai que todos os dias assomavam à janela do meu coração à procura de uma nesga de regresso, de uma fresta por onde desse para me lançar a mão…
Ele via em mim, continuamente, não o que eu tinha para lhe mostrar mas o que ele tinha para me dar. Era cheio de Esperança o vislumbre dos seus olhos… Viu-me e recebeu-me tal como sou, sem uma palavra a mais, sem um gesto a menos…
Por pouco me passava a Vida ao lado… ou não fosse uma Graça o que me salvou…"
Peguei na túnica e guardei-a como sinal maior de Esperança e novo nascimento. Sabia que havia de chegar a altura de a vestir, mal ouvisse os primeiros acordes de Festa…
Levava a túnica sobre o ombro quando entrei num lugarejo de casas baixas. Ouvi de um lado da pequena praça um rumor de gente e vi-os chegar, juntos, transportando uma Mesa que colocaram no meio da rua sob a sombra de um carvalho. Sacudiram as mãos felizes e alguém me veio acolher entregando-me a toalha. Pousou-ma nas mãos e pediu-me, com doçura: “Põe-nos a Mesa, peregrino…”
Era grande a toalha, não me cabia, teve de ser estendida a muitas mãos, e todos se sentaram. Começaram a contar histórias das tantas vezes em que se tinham sentado assim à Mesa, ali mesmo, com o meu bem amado… Uns chamavam-no “Nazareno”, outros, “Senhor”; todos, “Amigo”.
“Sabes, peregrino – disse-me um deles – o nosso Povo espera a Salvação do Deus que nos senta à Sua Mesa para nos servir do Seu Banquete! O Nazareno estreou a Festa e disse que era para todos os povos e nações, tirou o véu que cobria a grande Mesa e fez festa connosco à volta das entradas. O Reino de Deus chegou, dizia… e começa à Mesa, a que Deus prepara para agradecermos pelos que amamos e para perdoarmos aos que ainda não fomos capazes.”
Enquanto eu via e ouvia estas coisas, senti-me conhecido e acolhido e pensei dentro de mim que ser salvo é ser amado desta maneira.
Pedi-lhes que me contassem mais histórias de Mesa com o meu Mestre, e eles contaram. Fizeram-me prometer que eu iria continuar a pôr a Mesa com os meus irmãos, que iria fazer isso com a memória deles, como o meu bem amado os tinha feito prometer uma vez, uma última vez, quando lhes pediu que fizessem isso com a memória dele.
E eu ainda perguntei: “Isso, o quê?!” E um disse, mais rápido que os outros: “Alargar a Mesa da Vida Partilhada e estender a muitas mãos um lugar de Esperança…”
Éramos muitos à Mesa, naquela hora em que eu juro que o tempo tinha parado, a Terra e o Sol estavam quietos a olhar para nós e a Criação inteira suspensa na visão do que acontecia por ali…
Alguém olhou por cima do meu ombro e saudou em voz alta: “Tiago! João! Sentem-se aqui!”
Ao meu lado disseram-me “São os filhos de Zebedeu… Andaram com o Senhor desde o princípio…”
E eu lembrei-me da história das redes largadas e dos “pescadores de pessoas”…
Quando se sentaram à Mesa, perceberam que eu estava. Saudaram-me… e, por causa de mim, começaram todos a fazer memória da lição das redes largadas para o desafio das redes alargadas… "É que – diziam eles – existem as redes que se têm nas mãos, e as redes que se formam com as mãos. As redes com que se ganha a vida, e as redes que se formam com a vida uns dos outros. Redes de peixes; redes de pessoas."
E eu, pela primeira vez, comecei a entender que pescar pessoas, na boca do meu bem amado, é um desafio à Comunhão, a construir uma rede de fraternidade em que as pessoas se sintam tocadas, acolhidas, perdoadas, agraciadas… Salvas!
Depois, fizeram memória das andanças com o Mestre: uma história cozida de perguntas, as mais essenciais, as que rasgam caminhos mais fundos dentro de nós… Onde moras? Quereis vir e ver? Quem sou eu para vós?
As crianças já não estavam à Mesa connosco, corriam à volta do tronco do carvalho, outras jogavam com uma espécie de peão, outras ainda faziam jogos andando de gatas entre os nossos pés debaixo da Mesa.
Nenhuma brincava sozinha.
À minha frente, um ancião que soprava as palavras pelo meio dos poucos dentes que ainda sobravam, disse-me com um sorriso luminoso: “O Nazareno dizia que o Reino de Deus é dos que são como elas… Ele tinha coisas…”
Já nos ríamos, enquanto os amigos do meu bem amado me contavam histórias engraçadas e me falavam do humor fino e espontâneo com que ele era capaz de olhar para as coisas, quando se aproximou e começou a servir-nos de uma água fresquíssima uma mulher muito bonita. O rosto dela era novo, a sua pele tinha um moreno diferente de todos os outros e o seu sotaque cantava de outra maneira as palavras… Percebi que era da Samaria e a visão do seu cântaro de barro fez-me viajar para tão longe dali, para a beira de um poço em que um diálogo enamorado havida de dar um sentido novo a todas as coisas… Ela fixou-me, serviu-me também, e pousou o cântaro junto a mim. Quase cantando, na beleza do seu sotaque e no desenho de uns lábios finíssimos, disse-me que era para mim. Um presente, aquele cântaro… E que um dia saberia que tinha chegado a hora de o deixar ficar para trás.
“Quando provares de uma Água Viva – disse-me ela – mais fresca e saborosa que a água de qualquer poço do mundo, perceberás que chegou a hora de abandonar o cântaro de todas as procuras e enamorares-te de tal maneira daquele que te der essa Água que ele será a direcção e o lugar de todas as procuras que ainda houver por fazer…
Quando eu me encontrei com o meu Amor – continuou a Samaritana – Pedro não viu com bons olhos aquela alegria e aquela intimidade que sacia todas as sedes… Veio a experimentá-lo também ele, mais tarde, quando muitos não encontraram no Mestre as respostas que queriam e o deixaram. Ficaram poucos discípulos nesse dia, e o Senhor virou-se para esses poucos e disse: “E vós, também quereis ir embora?!” Pedro, que também andava à cata em muitos poços diferentes e guardava o mapa de muitas esperanças diferentes, abandonou o cântaro nesse dia, quando lhe respondeu: “Para quem iremos, Senhor?! Só tu tens palavras de Vida”…
O silêncio tomou conta de mim, aquele silêncio quase poesia… E deixei-me ficar assim, recolhido na memória salvadora do meu Senhor, desejando amá-lo em cada procura, e ser-lhe fiel nos pormaiores do que é pequeno…
Levantou-se um vento manso que fazia dançar a toalha da Mesa e puxava para o bailado da Vida a túnica que no princípio desse dia me tinha sido oferecida… A Criação murmurava "Ruah… Ruah… Ruah…” E à mesa disseram um nome: “Cléofas! Cléofas, parte o pão…”
Não sabia que ele estava ali… Um daqueles dois companheiros que regressavam, pesados com o fardo da morte do meu bem amado, para Emaús… Cléofas era o nome de um deles, e estava ali.

Perguntei-lhe: “Amigo, porque ficou para sempre dito o teu nome, e não sabemos o nome do outro companheiro que descaminhava contigo para Emaús?!”
“Porque o outro és tu, peregrino – respondeu ele, fixando-me – o outro és tu e são todos os peregrinos da terra de quem o Senhor se faz companheiro de caminho! O Senhor é um andarilho, veste-se de vento e de forasteiro, abre-nos a vida e ilumina-nos o caminho com a luz das Inscrituras que a Palavra de Deus faz em nós…”

Cléofas disse tudo isto com um pão entre as mãos, cozido lá na aldeia. Partiu-o e passou-o para todos, como se naquele pão partido nos tornássemos um só corpo, e na hora em que ele partiu o pão e o deu, vi alguém levantar-se e começar a servir um vinho cheio de vida e vigor. Tinha estado ali o tempo todo, mas eu ainda não tinha reparado… Como era possível ainda não o ter visto?! Estava vestido de Noivo, era belíssimo, tinha um rosto feliz e um jeito de se mexer que parecia abarcar em cada movimento a Mesa inteira e para lá dela, como se os seus braços fossem uma coisa só com as montanhas, os seus olhos uma coisa só com os astros do universo e os seus cabelos se estendessem por todos os prados da terra… Reconheci o Noivo no Partir do Pão...
“Que noivo é este?! Que vinho é este?!”, perguntei para o lado…

“Não sabes onde estás?!”, perguntaram-me… “Não”, disse eu… “Algures na Galileia”…
“Estás em Caná! Aqui é Caná… E HOJE celebram-se umas bodas… o Noivo sela HOJE a sua Aliança, e o Vinho que nos serve é Dom que ele mesmo nos faz…”

Fixei o olhar naquele Noivo, tão lindo, tão próximo… Como era possível ele ter estado ali o tempo todo e eu não o ter visto?!
O Vinho escorria para os copos, não sei se da jarra que ele segurava ou se directamente das suas mãos abertas, a vida corria como se fosse uma torrente a sair do seu lado, e diante de mim alguém disse o que não estava à espera de ouvir: “É o Senhor!”

E eu quis-me levantar e segui-lo, e fazer tudo o que ele me dissesse, para que o sonho nunca acabasse

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