Não sei o que nos aconteceu como civilização, mas a verdade é que as boas notícias nos embaraçam e entediam, ao ponto de quase evitarmos falar delas, enquanto que as más provocam uma curiosidade viral, uma excitação, um interesse redobrado.
Não há patologia pior do que este emurchecer da alma, deste olhar repleto de preconceitos que depois se faz amargo, deste juízo que se deixa capturar pelo defeito e pelo peso da imperfeição, e depois não voa, ignorando o que é a ligeireza.
Não há exercício mais esterilizador do que esta espécie de ressentimento expresso como anátema em relação à vida, do que este totalitarismo da lamúria que, sem nos apercebermos, nos asfixia, do que esta incapacidade de romper com a engrenagem do maldizer tudo e todos, ao qual nem nós escapamos.
E todavia, reconhecer o bem, procurá-lo obstinadamente e construí-lo a cada dia é a nossa vocação primordial. Dar notícia do bem e divulgá-lo realiza a nossa missão de fidelidade à vida.
Só assim se desperta a consciência de que cada ser humano é portador autorizado da imagem e semelhança de Deus. E só este é o modo de fazer justiça a esse extraordinário milagre que é estar vivo.
Colocamos demasiadamente o acento na compreensão racional, mas a razão só por si é clamorosamente insuficiente para interpretar a existência. A razão precisa, muitas vezes, de ser completada pela ordem do coração.
D. José Tolentino Mendonça
do Lat. ciboriu; s. m., a parte mais alta que exteriormente remata ou cobre a cúpula das grandes igrejas ou dos edifícios monumentais. Este blog é, na sua grande maioria, partilha de videos e textos de diversos autores que recebo diariamente. Com a visão dos outros podemos ver mais alto, mais longe...
terça-feira, 21 de maio de 2019
quinta-feira, 2 de maio de 2019
Corações desarmados
Uma das surpresas que os Evangelhos reservam aos seus leitores está no seguinte paradoxo: são os pecadores aqueles que melhor sabem escutar a mensagem de Jesus; que o procuram com a maior sede de o encontrar; que acreditam no seu poder de curar a vida e de a voltar a erguer, de exorcizar os demónios que nos oprimem, de vir ao encontro da nossa miséria e de reconfigurá-la com o poder da graça, de perdoar os nossos pecados.
São os desqualificados sociais, os mais distantes do templo e da lei, aqueles que mais vezes comem e bebem com Jesus, e que com maior radicalidade aderem à sua propostas, efetuando verdadeiras inversões existenciais.
Os justos daquele tempo, os fariseus e os escribas, olhavam para Jesus com curiosidade, mas sempre com suspeita, sempre com cálculos ambivalentes, medindo sempre aquilo que Jesus fazia com o metro do seu próprio códice normativo, sempre a julgá-lo.
Os pecadores, ao contrário, expunham-se a Jesus de modo desarmado, confiando que nele abrir-se-ia uma brecha através da qual Deus agiria, transformando o impossível da história no possível do Reino.
Por isso, não é o pecado que nos afasta de Deus. Nem é a nossa fragilidade a separar-nos dele. Aquilo que cimenta uma dramática distância é, sobretudo, a autossuficiência. Quando Pedro se chega a Jesus e diz «Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador», Jesus responde: «Pedro, de agora em diante serás pescador de homens».
D. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
quarta-feira, 1 de maio de 2019
Habitar a dor
O místico medieval Ricardo de São Vítor escreveu: «Onde está o amor, aí há um olhar». Não raro, este olhar que o amor nos requer dá-se no contexto de um sofrimento que teríamos absolutamente preferido não viver, mas da qual aprendemos alguma coisa – e alguma coisa de belíssimo – a que, sem ela, não teríamos chegado.
O mundo da dor é vasto e, quando menos o esperamos, encontramo-nos a habitá-lo. Os sentimentos que então irrompem são muitos: recusamo-nos a aceitar, entramos em revolta, em depressão; gostaríamos de fugir para longe; perguntamo-nos “porquê?”, “porquê precisamente a mim?”, “porquê precisamente agora?”; sentimo-nos impreparados para uma travessia muito árdua.
E, pelo menos neste último ponto, temos razão. O nosso tempo fez da doença, da velhice da deficiência um verdadeiro tabu. Vigora uma espécie de interdito em relação à vida vulnerável: cada um tem de viver estas situações em estreita solidão, sem grandes ajudas para aprofundar a sua experiência como um recurso, e não como uma fatalidade. No entanto, a verdade é bem diferente deste desígnio traçado pelo egoísmo ou pelo medo.
Escutava há alguns dias um pai falar do seu filho com síndrome de Down, Dizia, sem esconder a sua comoção: «Este meu filho é um membro importante da nossa família. É o nosso ponto de união. Fez de nós pessoas diferentes, mais humanas e atentas aos outros. Alargou a nossa capacidade de amar».
D. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
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